quarta-feira, 2 de julho de 2008

Um dia desses eu me caso com você


Quando tocava piano, se por acaso calhava pensar num primo longínquo a meio do estudo de uma frase, sempre que voltava a tocá-la, fosse horas depois, fosse anos depois, pensava no primo. Lá estava ele agarrado às notas, preso àquelas cinco linhas pretas, claustrofóbicas de tão apertadas. E ficava enquanto os harmónicos soavam, mesmo que já não soassem a nada perceptível, mesmo que fugissem do desenho hertziano audível.
Chamam memória auditiva ao que os nossos ouvidos fecham no cérebro. Eu chamava-lhe memória visual. Mas a verdade é que é uma memória inexplicável, uma memória que atravessa linguagens imperceptíveis (que alguns têm a prepotência de chamar... matemáticas), que entra pelos ouvidos, mas parece entrar pelos poros. E que passam por lábios que sopram em objectos dourados, por dedos que fazem tocar martelos, por cordas que se partem a todo o momento, mas que nem por isso são razão para fazer parar uma orquestra, demasiado empenhada em manter acordado o mar instável por cima das nossas cabeças. Os matemáticos, esses, vêem as ondas que ficam no ar. Eu via o primo longínquo.
Um dia cheguei a pensar que sabia música. Cheguei a ter a prepotência de lhe chamar nomes ofensivos, para explicar às crianças que existem frequências e ritmos que são o dobro, o triplo, o quádruplo uns dos outros. Cheguei a achar que era simples: uma questão de mais pressão aqui, mais movimento ali, mais equilíbrio nas pernas, costas mais direitas, notas mais correctas, mais staccato, mais graciosidade, mais "o que está escrito". Cheguei a pensar que sim, que música era tudo, mas tudo bem feito. Então curei-me dos anos de Spice Girls. Pensava eu.
Mas não posso explicar. Sempre que oiço um CD, há uma música... uma música que o vai riscar, que me vai acompanhar em idas e voltas a pé entre Lisboa e Tóquio, uma música que não me faz ver nada senão o que se passa nos meus ouvidos viciados em melodias simples que os façam sentir bem. Uma música cujas linhas têm que perturbar os meus tímpanos até à exaustão. Uma música que daqui a uns meses já não vou conseguir ouvir. E isto não é digno de uma menina bem formada.
Um dia desses eu me caso com você. Não é uma declaração de amor ou promessa minha, mas foge-me da cabeça sempre que se cala, e é obrigada a voltar pelos meus dedos maníacos que se colaram à "repetição" do mp3. Um dia desses eu me caso com você. Tão piroso, parece country na noite do rancho do vaqueiro dos "Laços de Família". Mas os meus ouvidos são uns mal educados, não há nada a fazer.

4 comentários:

Ricardo disse...

Não sei o que dizer. Passaste de madura no texto anterior para sexagenária neste. Isso das notas sofridas acontece mais com a minha geração e as anteriores, Margarida. Nunca pensaste em te dedicar ao teatro? Acho que darias uma boa dramaturga. Quem sabe se não também actriz...

Anónimo disse...

Amiga onde ficou o teu girl power? Viva às Spice Girls! ;P (Qual é q tu eras?)

Margarida disse...

A Victoria (mas ela ainda não parecia o Castelo Branco na altura...)

Anónimo disse...

Já disse várias vezes: não vale a pena estarmos om isso do "é bom". É difícil, eu sei, eu própria passo a vida a querer ouvir os cds "bons". Mas a verdade é que a música boa é aquela que nos provoca sensações, que nos faz carregar no repeat.