Porque quando a Andreia engravidou, eu soube logo. E quando o senhor e a senhora Silva se divorciaram, até soube antes que a coisa já não estava bem. E quando alguém morre, os cafés fecham mais cedo para que os donos estejam a horas decentes no velório. Porque nunca é negado um copinho ao alcoólico, embora toda gente nutra por ele uma espécie de pena, misturada com aquilo que "os meus filhos graças a Deus não são".
Porque a dentista, que dormia todas as noites em casa do vizinho do lado, burlou a maior quadrilheira e deixou de ter clientes. Porque há uma concentração de idosos à frente da minha rua que está em obras, para saber o que se vai construir, afinal, ali. Porque os animais abandonados são os mais felizes: "Nós organizamo-nos para que tenham sempre comida". Eu própria costumo agarrá-los e encostá-los à cara num acesso estranho de maternalismo. E chego a casa a coçar-me por todos os lados.
Porque a Carolina só tira vintes na escola e a Patrícia vai seguir Economia. Porque a Margarida vai para França trabalhar (emigrar, como o meu amigo Pereira). E porque o resto dos habitantes ou está reformado ou "vive dos rendimentos", de modo que tem tempo para passar o dia na quadrilhice e na suecada.
Porque a felicidade é a única coisa que se vê. E, no entanto, há tanta desgraça para comentar... existe uma espécie de pacto de silêncio totalmente respeitado e completamente por respeitar. E esta é a forma mais confortável de viver. I like it! Sei que todos escondem debaixo da cama um bocadinho de infelicidade. Todos menos eu, pensam eles. Penso eu que eles pensam. O Fernando Pessoa é que gostava destas coisas. E também gostava de galinhas. Eu cá fico baralhada. E não, não gosto especialmente de galinhas (vivas).
Tudo isto a trinta quilómetros de Lisboa. O que se pode desejar mais?
7 comentários:
Estamos na aldeia global, Ana, podes generalizar o teu cantinho a todos os outros cantinhos onde acontecem coisas assim e outras. Tu é que és uma menina afectuosa e por isso sentes essas ternuras pelos vizinhos. Mas felicidade visível isso é na tua idade, ou na de todos os que se dedicam ao bem-estar alheio. Ou aqueles que sabem que a Carolina tira vintes e ficam contentes e desejosos de que haja muitas Carolinas e Anas e mocidade atenta...
Quanto à Felicidade ou inFelicidade, cada um toma a sua dose como pode. Tenho para mim que é a Esperança que nos mantém vivos e quando ela se esvai desligamos as máquinas. Tens razão quanto à aldeia em que moras mas isso não impede que eu e cada um daqueles que nos acompanham nesta jornada viva em aldeias semelhantes. Basta olhar para o Lumiar para perceber que se está numa aldeia, mas se vieres até Telheiras ou à avenida da República ou a Campo de Ourique, passa-se precisamente a mesma coisa que na tua zona. O conjunto das aldeias é que faz a miscelânia da cidade grande. Ou bastar-te-á sentares-te à frente do computador e ligar a Internet.
O mais difícil na aldeia global em que vivemos é manter a individualidade. Ser-se igual a todos os que nos cercam e sentir-se interiormente diferente da maior parte deles. Se conseguires fazer isto ao longo da tua vida, verás que tudo te correrá pelo melhor.
Já que falamos de sentimentos, Margarida, penso que caberá aqui mencionar o Amor, que inequivocamente eu sinto por todos quantos me rodeiam neste caminho que escolhi. Os efeitos do Amor que se dá aos outros recebêmo-los em duplicado e é por isso que continuo a poder dá-lo sem olhar a gastos. Este Amor crescente enriquece-me a Alma, o único bem material que me restará quando tiver que prestar contas do presente aluguer.
Amei o teu texto. Vem de encontro ao que penso há vários anos. Sei que os gatinhos, tão amorosos, não são os da D. Lurdes, pois ela já não mora aí, mas de certeza que estão bem entregues.
vê-se mesmo que és da cidd...
sei bem como é, quando chego a casa há 5 velhotas na rua que comentam "hoje chegaste mais tarde. tens um ar cansado. ganhas bem?"
sei bem como é, quando chego a casa há 5 velhotas na rua que comentam "hoje chegaste mais tarde. tens um ar cansado. ganhas bem?"
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